Terça-feira, outubro 15

O regresso do ‘futuro da Europa’

A ‘Conferência sobre o Futuro da Europa’ está prestes a terminar os seus trabalhos.  Pedindo emprestado o nome à “Convenção sobre o Futuro da Europa” de Giscard d’Estaing; partilhando com esta o quadro e os métodos e discutindo as mesmas questões, ela não propõe uma Constituição para a Europa, mas, no entanto, contém mudanças institucionais mais radicais, nomeadamente a introdução de um distrito eleitoral europeu, ou seja, um sistema eleitoral em que a territorialidade (local, regional ou nacional) deixaria de ser tida em conta. Este círculo eleitoral tornar-se-ia único após um período de transição, durante o qual os círculos eleitorais territoriais continuariam   a ser autorizados.

Tudo começou em novembro de 2019, com um ‘não-documento’ franco-alemão sobre o qual as instituições europeias se entenderam para lançar a conferência. A sua organização é gerida por um ‘consórcio de prestadores de serviços externos contratados pela Comissão’, responsável pela seleção dos oitocentos membros da conferência, divididos em quatro painéis, com base em critérios aleatórios, respeitando o equilíbrio geral da população (embora inclinado para os jovens, dado que um terço dos participantes tem de ter entre 16 e 25 anos). A equipa editorial é composta por membros do consórcio.

Um dos quatro painéis intitula-se ‘Democracia Europeia/Valores e Direitos, Estado de Direito, Segurança’ e está dividido em cinco vertentes; é guiado por vinte e um especialistas, uma quinzena de ‘facilitadores profissionais’ e um grupo de 38 ‘verificadores de factos’. Dos 200 cidadãos selecionados, 162 teriam participado na terceira sessão, a participação em sessões anteriores não foi publicada.

O texto elaborado pelo consórcio de prestadores de serviços externos está bastante desequilibrado quanto à importância, cobertura política, peso e o sentido das suas recomendações; a mais significativa politicamente sendo a décima sexta, que tem por objectivo estabelecer uma única circunscrição eleitoral nas eleições europeias.

Há mais de vinte anos que o Parlamento Europeu tem defendido, em várias versões, este círculo eleitoral, como se afirma numa publicação dos seus serviços.  O seu título: ‘Europeizar as eleições europeias’ dá a explicação fundamental para a proposta; para que a eleição seja ‘verdadeiramente europeia’ – com uma ‘campanha verdadeiramente europeia’ liderada por ‘candidatos verdadeiramente europeus’ que conduziriam uma ‘verdadeira competição europeia’ – a Europa teria de se livrar de qualquer outra identidade territorial, através da criação de uma ‘demos europeia’.

O Tratado da União Europeia proclama o respeito pelos ‘valores universais dos direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, da liberdade, da democracia, da igualdade e do Estado de direito’. A reivindicação europeia destes valores como património próprio do continente é, no mínimo, questionável.

Mas, em todo o caso, tudo o que sabemos sobre a democracia grega aponta para o papel central do território na democracia.  Os ‘demoï’, na base do sistema democrático, são as aldeias, no sentido tanto de localizações geográficas como de comunidades humanas, um significado que sobreviveu, por exemplo, na língua espanhola ou no português dialectal (pueblo/povo significando tanto o povo como a aldeia).

Para além do debate sobre o património, a dupla consideração dos valores universais e das suas supostas fundações europeias deu origem a uma ideia ambígua de que os europeus devem respeitar os valores universais existentes e também reinventá-los de ‘maneira europeia’. Ou seja, trata-se de ‘europeizar’ a democracia!

Além disso, o texto da conferência confunde ‘identidade’ e ‘valores’.  Enquanto a criação de uma nova identidade (sendo a mais famosa, a do novo ser humano soviético) é uma característica típica dos poderes totalitários, as democracias não visam criar novas identidades, mas sim respeitar as identidades existentes num conjunto de valores (por exemplo, valores universais) que as restringem a formas compatíveis com o respeito mútuo.

Isto aplica-se aos Estados nacionais, mas ainda mais a uma construção supranacional como a União Europeia; a preocupação recorrente com uma suposta falta de identidade europeia expressa nos textos europeus, como a que está actualmente a ser avaliada, é, por si só, preocupante.

Quanto às grandes democracias federais que podem ser consideradas exemplos para a União Europeia (Índia, Estados Unidos ou Brasil), nenhuma delas tem uma única circunscrição eleitoral e não há vestígios de um debate que ligue a ‘Indianidade’, a ‘Americanidade’ ou a ‘Brasileiridade’ a essas circunscrições eleitorais.

Tendo em conta que a liberdade de associação dos cidadãos em partidos políticos faz parte da organização democrática e que o bom funcionamento das instituições europeias, na maior parte das tradições institucionais europeias, requer a existência de partidos políticos europeus funcionais, não há razão para crer que o apagamento das circunscrições determinadas espacialmente facilitaria esta tarefa.

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